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A guarda compartilhada: O que e em nome de quem se deve compartilhar
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A guarda compartilhada: O que e em nome de quem se deve compartilhar

Em uma mediação de divórcio onde os mediados  têm filhos menores de idade a questão da guarda desses é assunto fundamental na busca do consenso entre o casal.  No processo de mediação a proteção e garantia da preservação da relação  entre pais e filhos independentemente do rompimento do vínculo do casamento, deve ser amplamente discutida. Veja neste artigo de Cláudia Pretti Vasconcellos Pellegrini [1], o que e em nome de quem se deve compartilhar a guarda: http://www.ibdfam.org.br/artigos/1376/A+guarda+compartilhada%3A+O+que+e+em+nome+de+quem+se+deve+compartilhar



A família, célula mínima de nossa organização civilizatória, e primeira garantidora de estruturas fundamentais para a constituição subjetiva dos filhos, vem sofrendo modificações ao longo dos tempos, modificações essas que alteram o estatuto e o lugar de seus membros, assim como sua dinâmica de funcionamento.


Antes os filhos eram tomados como propriedade dos pais pois precisavam dar suporte nos trabalhos do campo. Com a revolução industrial, uma profunda modificação acontece na estruturas familiares. O cuidado dos filhos fica mais por conta das mães e, mais a frente, sobretudo após a segunda grande guerra, com a entrada das mulheres mais efetivamente no mercado de trabalho, seguido do movimento feminista, e de todos os avanços científicos e tecnológicos, novas mudanças nas formas de organização familiar se apresentaram, trazendo seus efeitos para seus componentes, e para o mundo de modo mais abrangente.


Podemos mesmo afirmar que, se a família como célula mínima muda, o mundo muda e, consequentemente, os campos de saber que se ocupam do tema precisam também mudar. No texto “O inconsciente e o corpo falante”, o psicanalista Jacques-Alain Miller afirma a esse propósito:

Se o mundo muda, a psicanálise também. A psicanálise muda, não é um desejo, é um fato, ela muda nos nossos gabinetes de analistas[2].

E não somente a psicanálise muda com as mudanças do mundo. O direito de família segue na mesma esteira. Assim, tanto o direito de família quanto a psicanálise encontram desafios comuns, pois os dois campos abordam estruturas semelhantes ao se ocuparem das relações familiares e amorosas. Já no seu texto de 1930, o Mal-estar na Civilização, Sigmund Freud apontava o sofrimento oriundo das relações com os outros homens como a fonte mais penosa de sofrimento para o sujeito. E ainda a família como apresentando as estruturas mais complexas e problemáticas. Abordar o casamento, e as relações amorosas implica abordar o sexo, a reprodução, o desejo, o afeto, o amor, e sua outra face, o ódio. Implica abordar uma outra cena, a do inconsciente.


É fato que o direito de família e a psicanálise se ocupam cada um de seu campo, e que não podemos psicanalisar o campo do direito de família e nem introduzir na psicanálise a objetividade da ordem jurídica. Mas, sem dúvidas, compreender a estrutura de um processo ou litígio judicial levando em conta a subjetividade em seus fatos e atos, e pensarmos o sujeito do direito como também um sujeito do desejo, torna a tarefa mais possível. Neste sentido, precisaremos levar em conta que, determinadas máximas tão propagadas no campo do direito precisam ser relativizadas pelo direito de família. Se “O que não está nos autos não está no mundo”, precisamos pensar sim, no que pode estar por trás do mundo dos autos. Ou ainda questionar a validade do “Antes um mau acordo do que uma boa demanda”. Muitas vezes a construção de uma boa demanda, uma escuta atenta do que está em jogo em um determinado litígio, por exemplo, será justamente a possibilidade de construir um bom acordo – bom acordo no sentido de acordo que poderá ser cumprido, pois implica cada um dos envolvidos. Caso contrário poderá servir de propulsor para outras demandas.


Importante ressaltar que as funções da família, do pai e da mãe ocupam lugar fundamental na estruturação psíquica do sujeito, garantindo sua entrada no mundo simbólico e, portanto, sua humanização. A família, independentemente de sua configuração, seja ela heterossexual, homo afetiva, monoparental, recomposta, ou qualquer uma outra, deve manter sua função, que é de inserir essa criança numa genealogia e apresentar-lhe a diferença geracional, para que possam servir de balizamento de sua constituição, tal como trabalha Pierre Legendre, jurista e psicanalista francês, em “O inestimável objeto da transmissão”. Ou ainda, como Jacques Lacan precisamente descreve em sua “Nota sobre a Criança”,

A função de resíduo exercida (e ao mesmo tempo mantida) pela família conjugal na evolução das sociedades destaca a irredutibilidade de uma transmissão – que é de outra ordem que não a da vida segundo a satisfação das necessidades, mas é de uma constituição subjetiva, implicando a relação com um desejo que não seja anônimo.[3]

As mudanças ocorridas são fruto do avanço da civilização e trazem muitas vantagens para os sujeitos aí envolvidos, mas também criam alguns problemas, ou acentuam outros que antes apresentavam-se de forma mais amena. O fundamental é que, ainda com todas as mudanças ocorridas no mundo e na organização das famílias, algumas estruturas se mantêm preservadas, ou precisam se manter preservadas para que a criança, fruto desse encontro sempre faltoso que é o casal, possa ter os elementos necessários para construir seu caminho subjetivo. Como podemos lidar com essas mudanças e, ao mesmo tempo, preservar a função constitutiva da ordem humana que a família e seus membros possuem? No seminário “A relação de Objeto” Lacan, abordando as mudanças observadas na contemporaneidade, se perguntava:

Por que via, de que modo, se inscreverá no psiquismo da criança a palavra do ancestral?[4]

Que saídas podemos encontrar para que essas estruturas fundamentais sejam preservadas? Como dar às crianças e adolescentes uma bússola que os oriente no caminho a ser traçado? Se o “romance familiar”, assim nomeado por Freud, é o que orienta o caminho subjetivo dos filhos, como garanti-lo na atualidade? A guarda compartilhada pode servir como facilitador na preservação dessas funções estruturais necessárias à constituição do sujeito humano?


Embora a convivência com os filhos seja de uma ordem distinta da conjugalidade de seus genitores, e que os mesmos possam compartilha-la independentemente de estarem juntos como casal, ao falarmos de guarda compartilhada enquanto regime de guarda e convivência com os filhos, estamos falando do final de um relacionamento conjugal. Que, como tal, havia estabelecido um arranjo, um modo de funcionamento, a partir do lugar ocupado pelo sujeito no desejo do outro. Com o rompimento dessa conjugalidade, vemos eclodir muitas questões inconscientes que poderão se apresentar como motor de disputas judiciais intermináveis, envolvendo muitas vezes os filhos, oriundos dessa conjugalidade. Aspectos da ordem daquilo que nomeamos de infantil em psicanálise, determinam muitas vezes dificuldades no contexto das separações, e mantém conjugalidade e parentalidade sem a distinção necessária. Isso acarreta dificuldades enormes para todos os envolvidos na disputa que aí se inicia e é ainda fonte de muitas dificuldades para os profissionais envolvidos na condução desses processos.


A Lei da guarda compartilhada, surge numa nova sistemática do direito de família. Mais do que apenas uma nova lei, considero podermos pensa-la como uma tentativa bem-sucedida de implicar ambos os genitores na vida dos filhos, facilitando não somente a convivência e o acesso à vida e à rotina diária dos filhos, mas também a comunicação parental e familiar, colocando na cena a consciência da responsabilidade parental. Penso podermos afirmar ainda que a lei da guarda compartilhada inclui de forma clara e sistemática a noção de que a organização familiar pode sofrer mudanças, sem que o lugar e os direitos dos filhos, já presentes na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente, possam sejam violados.


No entanto, assim como tudo que se refere ao comportamento e às relações humanas, algumas dificuldades têm se apresentado na aplicação da lei de guarda compartilhada. Ainda que a referida lei tenha passado de uma indicação a ser aplicada sempre que possível, em 2008, ao status de regra geral em 2014.


Se pesquisarmos a etimologia da palavra “compartilhada”, observaremos no dicionário Caldas Aulete, sua origem latina – de compartire-, com os seguintes significados: dividir, repartir, partilhar, distribuir para vários indivíduos ou lugares, repartir entre si, aquinhoar, tomar parte em semelhantes. Deduzo então que o núcleo desta família de palavras centra-se no verbo PARTIR, enquanto DIVIDIR e as várias possibilidades de significados abrangendo um amplo campo de significação. Gostaria de destacar os significantes compartição – substantivo, e compartilhada – adjetivo, referindo-se à expressão GUARDA COMPARTILHADA, em que COM + PARTIR + LHADA, tem o prefixo COM indicando junção, participação. Podemos então pensar que a palavra COMPARTILHADA abrange, então, uma divisão, mas tem um objetivo único. Diria mesmo que o significante “compartilhada” tem significado paradoxal, uma vez que divide funções e, ao mesmo tempo, une objetivos decorrente das funções.


Compartilhar a guarda de um filho significa decidir juntos, dialogar a respeito do filho, mas, sobretudo, significa aceitar a diferença. Aceitar que o outro pode cuidar do filho de forma diferente e ainda assim cuidar bem. É aceitar que cada um ama e cuida do seu jeito.


Por que razão, temos encontrado, nos dias atuais, tanta dificuldade em compartilhar? Diria mesmo que essa dificuldade não se restringe apenas ao compartilhamento da guarda e responsabilidade pelos filhos. Vivemos, como apontado amplamente por estudiosos das áreas da sociologia, filosofia e psicanálise, a era dos direitos. Um momento em que aceitar que nem tudo é possível para o sujeito humano, e que a falta e a perda precisam estar incluídas na vida, tem sido uma tarefa complicada.


Na clínica, presenciamos situações em que os pais, após o final da relação conjugal, exercem o compartilhamento da guarda dos filhos, independentemente do regime estabelecido. Mas também tem sido muito comum vermos enormes confusões a respeito do que é o regime de guarda compartilhada, que chamam atenção, sobretudo para nós, psicanalistas, já que o texto da lei parece claro. Destaco aqui algumas escutas clínicas que exemplificam essas dificuldades: muitas vezes o pedido de guarda compartilhada comparece como ameaça ou mesmo punição ao ex-cônjuge. Não é incomum escutarmos frases do tipo: -“Se ele (ou ela) continuar agindo assim, vou pedir a guarda compartilhada, aí quero ver! ”. Não por acaso, a proposta da guarda compartilhada visa também minimizar os efeitos da guarda unilateral, tais como o abuso do poder parental, manipulação dos filhos pelo genitor guardião, e sobretudo a alienação parental e as falsas acusações de abuso muitas vezes decorrentes dessa situação.


Uma outra é a confusão entre a guarda compartilhada e a guarda alternada, que se apresenta sobretudo pela via de uma contabilidade do tempo da convivência entre pais e filhos, quando o que a lei preconiza é que o tempo de convívio deve ser dividido de forma equilibrada, tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos. A lei não fala de divisão matemática, nem de banco de horas. Poderíamos pensar que esses equívocos, muitas vezes apresentados pelos próprios operadores do direito, estariam denunciando uma dificuldade de outra ordem? Uma dificuldade que não está descrita nos autos mas que serve de motor para o prolongamento dos processos?


Por fim, uma terceira dificuldade, que nos coloca uma questão fundamental e que merece ser destacada. Que lugar está sendo dado aos filhos quando se discute um regime de guarda e convivência? A guarda compartilhada é um direito de quem? Está a serviço de satisfazer aos interesses de quem? Mais uma vez podemos observar clareza no texto da lei: “...sempre tendo em vista as condições fáticas e o interesse dos filhos”. Mas como garantir o princípio do melhor interesse dos filhos em uma decisão a respeito do regime de guarda e convivência? Não é incomum vermos pais encenando disputas e reivindicando situações e direitos, numa luta onde são os seus próprios interesses que estão em jogo. Situações em que a guarda compartilhada, mais do que garantir o melhor interesse dos filhos, comparece como reivindicação de direito dos pais. Equívoco grave, pois coloca os filhos no lugar de objeto, seja objeto de disputa dos pais, seja de objeto de satisfação dos caprichos parentais, etc. Uma escuta clínica ilustra muito bem o que aqui pretendo ressaltar: O pai de uma criança de apenas 3 anos, com muita dificuldade para aceitar a presença da mãe na vida e na educação da filha, me diz entregando-me folhas e mais folhas de cronogramas e datas de feriados do ano: “- Fiz quatro cronogramas do ano, pensando em todas as possibilidades, e o melhor é esse, apesar da mãe ainda estar com 19 dias favoráveis a ela e eu fico no prejuízo”. Cito Lenita Pacheco Lemos Duarte:


Nos casos de litígios, como se constata na clínica psicanalítica, é que ocorrem os maiores problemas envolvendo os filhos, relativos às questões de guarda, convivência, responsabilidade e a tomada de decisões conjuntas, pois frequentemente eles são desrespeitados como “sujeitos do direito e do desejo”, negando-se e anulando-se sua subjetividade. Como os pais querem vencer, para muitos não importam as armas desse embate e é nesse cabo de guerra que se encontra a criança/adolescente, um sujeito se constituindo que precisa de amor e modelos positivos para se identificar”.[5]

Neste sentido, garantir que lugares e funções de cada um dos envolvidos neste momento tão difícil que é uma separação conjugal é de suma importância. Se os pais puderem ocupar cada um a sua função, se parentalidade e conjugalidade estiverem claramente diferenciadas, colocando os conflitos na esfera da conjugalidade e preservando a filiação, e se os filhos, crianças ou adolescentes, puderem ter preservado sua subjetividade em meio a todo esse processo, teremos garantido a estes a possibilidade de elaborar o luto necessário das perdas envolvidas, das mágoas e conflitos. Sabemos que comparecem para os filhos questões que fogem a sua compreensão nesses momentos, sobretudo porque ainda estão dependentes dos atos e dos ditos de seus pais.  Se houver a possibilidade de ter seu lugar de sujeito preservado, haverá também a possibilidade de minimizar as sequelas em seu psiquismo.


[1] Psicanalista, Membro da Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória, Secretária do IBDFAM/ES, Vice Diretora de Relações Interdisciplinares do IBDFAM

[2] Conferência pronunciada por ocasião do encerramento do IX Congresso da associação Mundial de Psicanálise (AMP), em 17 de abril de 2014.

[3] LACAN, Jacques, Nota sobre a Criança, In Outros Escritos. Zahar, RJ, 2003.

[4] LACAN, Jacques, o Seminário, Livro 4. A Relação de Objeto, pág386. Zahar, RJ, 1995

[5] DUARTE, Lenita Pacheco Lemos. A angústia das crianças diante dos desenlaces parentais. Lumen Juris, RJ 2013. Pag. 248


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