
Tive uma ideia de transcrever no blog, cinco histórias contadas por Rubem Alves em seu livro: “Ostra feliz não faz pérola”. Provavelmente perguntarão: por que essas histórias? Talvez, não me peçam certezas, porque me calaram fundo com o sentimento experienciado no exercício da mediação de conflitos.
Elizete Carvalho
O ato de ouvir
O ato de ouvir exige humildade de quem ouve. E a humildade está nisso: saber, não com a cabeça, mas com o coração, que é possível que o outro veja mundos que nós não vemos. Mas isso, admitir que o outro vê coisas que nós não vemos, implica reconhecer que somos meio cegos...Vemos pouco, vemos torto, vemos errado. Bernardo Soares diz que aquilo que vemos é aquilo que somos. Assim, para sair do círculo fechado de nós mesmos, em que só vemos nosso próprio rosto refletido nas coisas, é preciso que nos coloquemos fora de nós mesmos. Não somos o umbigo do mundo. E isso é muito difícil: reconhecer que não somos o umbigo do mundo. Para ouvir de verdade, isso é, para nos colocarmos dentro do mundo do outro, é preciso colocar entre parêntesis, ainda que provisoriamente, as nossas opiniões. Minhas opiniões! É claro que eu acredito que as minhas opiniões são a expressão da verdade. Se eu não acreditasse na verdade daquilo que penso, trocaria meus pensamentos por outros. E se falo é para fazer com que aquele que me ouve acredite em mim, troque seus pensamentos pelos meus. É norma de boa educação ficar em silêncio enquanto o outro fala. Mas esse silêncio não é verdadeiro. É apenas um tempo de espera: estou esperando que ele termine de falar para que eu, então, diga a verdade. A prova disto está no seguinte se levo a sério o que o outro está dizendo, que é diferente do que penso, depois de terminada a sua fala eu ficaria em silêncio, para ruminar aquilo que ele disse, que me é estranho. Mas isso jamais acontece. A resposta vem sempre rápida e imediata. A resposta rápida quer dizer: “não preciso ouvi-lo. Basta que eu me ouça a mim mesmo. Não vou perder tempo ruminando o que você disse. Aquilo que você disse não é o que eu diria, portanto está errado...”.
Definição
Para encerrar a conversa, a entrevistadora fez a última pergunta: “Como é que você se definiria”? Êta pergunta impossível de ser respondida! Porque definir vem do latim finis, fim. Definir é determinar os limites. Mas sei eu lá quais são meus limites! Para respondê-la, eu teria de encontrar uma frase que não fosse definição, que apontasse para o sem limites. Aí eu me lembrei da frase que Robert Frost escolheu para a sua lápide e disse que aquela era a definição de mim mesmo: “Ele teve um caso de amor com a vida”. Quero que estas sejam as palavras na minha lápide.
Sobre o tamanho
Se o maior fosse o melhor, o elefante seria o dono do circo.
Caleidoscópio
O caleidoscópio nasceu na Inglaterra, nos primeiros anos do século passado. Seu inventor foi Sir David Brewster. Acho que para um vagabundo porque se fosse ocupado não teria a ideia. O trabalho intenso faz mal à criatividade. Nietzsche, dirigindo àqueles para quem “o trabalho furioso é coisa boa, e também o que é rápido, novo e diferente”, conclui: “o fato é que vocês não se suportam. Seu trabalho é fuga, um desejo de se esquecerem de vocês mesmos. Mas vocês não têm conteúdo... nem mesmo para a preguiça”. Deve ter sido num momento de vagabundagem que a ideia do caleidoscópio apareceu na cabeça de Sir David Brewster. Como era homem culto e conhecia o grego antigo, uniu as palavras gregas kalos (=belo), eidos (= imagem) e scópeo (=vejo). Caleidoscópio quer dizer “vejo belas imagens”. As belas imagens do caleidoscópio se fazem com caquinhos de vidro, clipes, tachinhas, pedrinhas. O mesmo acontece com os artistas. Eles têm a capacidade de produzir o belo com o insignificante. Esse livro está cheio de caquinhos que podem, eventualmente, produzir belas imagens.
Ostra feliz não faz pérola
Ostras são moluscos, animais sem esqueleto, macias, que representam as delícias dos gastrônomos. Podem ser comidas cruas, com pingos de limão, com arroz, paellas, sopas. Sem defesas – são animais mansos-, seriam uma presa fácil dos predadores. Para que isso não acontecesse, a sua sabedoria as ensinou a fazer casa, conchas duras, dentro das quais vivem. Pois havia num fundo de mar uma colônia de ostras, muitas ostras. Eram ostras felizes. Sabia-se que eram ostras felizes porque dentro de suas conchas saía uma deliciosa melodia, música aquática como se fosse um canto gregoriano, todas catando a mesma música. Com uma exceção: de uma ostra solitária que fazia um solo solitário. Diferente da alegre música aquática, ela cantava um canto muito triste. As ostras felizes se riam dela e diziam: “ela não sai de sua depressão...”, não era depressão. Era dor. Pois um grão de areia havia entrado dentro de sua carne e doía, doía, doía. E ela não tinha jeito de se livrar dele, do grão de areia. Mas era possível livrar-se da dor. O seu corpo sabia que, para livrar-se da dor que o grão de areia lhe provocava, em virtude de sua aspereza, arestas e pontas bastava envolvê-lo com uma substância, lisa, brilhante e redonda. Assim, enquanto cantava seu canto triste, o seu corpo fazia o trabalho – por causa da dor que o grão de areia lhe causava. Um dia passou por ali um pescador com seu barco, lançou a rede e toda a colônia de ostras, inclusive a sofredora, foi pescada. O pescador se alegrou, levou-as para casa e sua mulher fez uma deliciosa sopa de ostras. Deliciando-se com as ostras, de repente seus dentes bateram num objeto duro que estava dentro de uma ostra. Ele tomou nos dedos e sorriu de felicidade: era uma pérola, uma linda pérola. Apenas a ostra sofredora fizera uma pérola. Ele a tomou e deu de presente para a sua esposa.
Isso é verdade para as ostras. E é verdade para os seres humanos. No seu ensaio sobre O nascimento da tragédia grega a partir do espírito da música, Nietzsche observou que os gregos, por oposição aos cristãos, levavam a tragédia a sério. Tragédia era tragédia. Não existia para eles, como existia para os cristãos, um céu onde a tragédia seria transformada em comédia. Ele se perguntou então das razões por que os gregos, sendo dominados por esse sentimento trágico da vida, não sucumbiram ao pessimismo. A resposta que encontrou foi a mesma que a ostra que faz uma pérola: eles não se entregaram ao pessimismo porque foram capazes de transformar a tragédia em beleza. A beleza não elimina a tragédia, mas a torna suportável. A felicidade é um dom que deve simplesmente gozado. Ela se basta. Mas ela não cria. Não produz pérola. São os que sofrem que produzem a beleza, para parar de sofrer . Esses são os artistas. Beethoven- como é possível um homem completamente surdo, no fim da vida, tenha produzido uma obra que canta a alegria? Van Gogh, Cecília Meireles, Fernando Pessoa...
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